O Acerto

A manhã passou e continuou deitado na cama, largado, internamente clamando por algo que pudesse salvá-lo. Nem sequer conseguiu dormir um pouco mais. Seus olhos não fechavam. Virou de lado e foi cegado pela luz do rádio-relógio que marcava catorze horas e trinta e dois minutos. Achou um disparate seu corpo entregue a tamanho deleite sobre um pecado tão capital como a preguiça. Sentiu uma imensa culpa por achar que ao deitar-se todos os questionamentos iriam para longe.
Cumpriu com o mesmo ritual de antes. Abriu as cortinas, deixou o sol entrar, arrumou a cama, foi ao banheiro lavar a face e olhar novamente os respingos; foi até a cozinha, deu um gole no café amanhecido e lembrou do que sua querida e falecida avó, serena, de cabelos brancos dizia: 'café velho e frio, é como um chute na bunda, meu filho', e sentiu o café descer com desgosto pela garganta. Preparou um pão com manteiga para saciar sua fome por hora, e desanimou quando viu as panelas engorduradas sem lavar na pia. 'Há quantos dias ninguém aparece por aqui?', murmurou.
Sentiu vontade de ouvir Ella. Sempre se sente acolhido quando ouve o som da sua voz. Grande, negra e bela, Ella Fitzgerald. Ligou o toca discos, e enquanto ouvia a melodia, 'how high the moon, there is no moon above when love is far away too, till it comes true, that you love me as I love you...', sentiu saudades de um tempo que não volta mais; mordeu o pão e deu mais um gole no desgostoso café.

Nenhum comentário:

Postar um comentário